Era um dia como
outro qualquer no seminário teológico em que eu dava aula. De repente, em meio
aos debates da classe, uma irmã soltou o comentário: “Ah, professor, porque na
época em que eu era da Igreja Sorveteriana…”. Eu parei, de início sem entender.
Mas, enfim, caiu a ficha. O seminário pertencia a uma denominação pentecostal.
E a referência que aquela irmã estava fazendo era à Igreja Presbiteriana. O
trocadilho ficou por conta da intolerância que existe da parte dos pentecostais
com as igrejas tradicionais que, segundo eles, são “frias” (como um sorvete, na
lógica da piada). Então a totalmente bíblica, séria e relevante Igreja
Presbiteriana virou…sorveteriana. Esse episódio, aparentemente bobo, ocorreu há
alguns anos, mas ficou marcado na minha memória. Pois, naquele dia, eu tive de
admitir algo que é muito doloroso para um cristão: nós, evangélicos, somos
intolerantes. Aliás, muito intolerantes.
Pronto: agora você
que, como eu, é evangélico, ficou chateado ou revoltado comigo, porque fiz essa
afirmação. “Imagina, Zágari, somos o povo de Deus, a noiva do Cordeiro, embora
odiemos o pecado amamos o pecador, como você ousa dizer que somos
intolerantes?! Intolerantes são os islâmicos, os talibãs, os ateus, os hindus,
os neonazistas… nós jamais!”. Bem, lamento te dizer que Papai Noel não existe,
mas se por acaso você pensou qualquer coisa parecida com isso… esse seu simples
pensamento já comprova a minha afirmação. Por quê? Porque você não suportou o
fato de eu ter essa opinião, se ela diverge da sua. Para comprovar isso basta
abrir o dicionário e ler a definição de intolerante: “Aquele que não pode
suportar as crenças e as opiniões alheias, se divergem das suas“.
Olhe em volta. Leia
o que é escrito todos os dias nas redes sociais cristãs. Ouça o que os telepastores
dizem. Sente para comer uma pizza com os irmãos da sua igreja e escute o que
eles falam sobre as outras denominações. O que você vai encontrar é um oceano
de intolerância. E não estou falando de intolerância contra o pecado, contra
grupos gays, contra o governo. Estou falando de intolerância contra outros
membros do próprio Corpo de Cristo. Ou seja: a Igreja tornou-se intolerante com
a Igreja. A mão não suporta que o pé tenha cinco dedos, o pé não suporta que a
barriga tenha umbigo e a barriga não suporta a crença da boca de que ela tem 32
dentes.
De um lado, por
exemplo, você tem pentecostais, que não toleram as igrejas históricas. Porque,
afinal, batistas, presbiterianos, metodistas e outros ditos “tradicionais” de
repente não batem palmas em seus cultos, não falam em línguas estranhas em voz
alta, não ficam gritando “glória” e “aleluia” na hora da pregação, não expulsam
demônios e outras coisas mais. Graças a coisas como essas, o pentecostal no
mínimo coleciona piadinhas que desmerecem as crenças e práticas dos
tradicionais – isso quando não fazem acusações sérias sobre eles, como as de
“não darem lugar ao Espírito” ou serem igrejas “sem poder”. Algum pentecostal
aí vai dizer que isso não acontece? Fato é que nós, pentecostais, não
suportamos as crenças e as opiniões dos tradicionais. E se intolerante é aquele
que não pode suportar as crenças e as opiniões alheias, se divergem das suas,
perdoe-me, mas nos encaixamos direitinho na definição do dicionário. E falo
como pentecostal que sou.
Por outro lado, há
os tradicionais, que não suportam o tipo de culto dos pentecostais, segundo
eles “sem ordem nem decência”. Não suportam a crença de que os dons – como o de
profecia e o de variedade de línguas – permanecem atuantes nos nossos dias.
Muitos não aceitam expressões mais expansivas de louvor e demonstrações de
adoração que saiam de uma liturgia que deve seguir estritamente sua opinião de
como uma liturgia deve ser – de preferência descrita direitinho num boletim. E
se intolerante é aquele que não pode suportar as crenças e as opiniões alheias,
se divergem das suas… olha o dicionário pondo o dedo na cara dos tradicionais.
E isso é só a ponta
do iceberg. Os adeptos da Missão Integral se irritam profundamente com os
cristãos que não botam fé em seu modelo de ação global junto à sociedade. Os
que são contra a Missão Integral os acusam de marxismo travestido de
cristianismo. A Igreja Emergente não suporta a opinião dos ortodoxos e os
ortodoxos discordam veementemente das crenças de miscigenação igreja-sociedade
da Igreja Emergente. Quem ama “Love wins” acusa John Piper de não ter amor.
Quem gosta de John Piper não tolera o suposto universalismo de Rob Bell. Os
teólogos da Teologia Relacional não suportam a crença de que Deus está no
controle das catástrofes mundiais e quem defende a soberania de Deus sobre tudo
o que ocorre no mundo não suporta a opinião dos defensores da Teologia
Relacional. Os desigrejados não suportam a Igreja institucional e quem
frequenta a Igreja institucional não suporta a opinião da igreja dos
sem-igreja. Os arminianos não suportam as crenças dos calvinistas e os
calvinistas pensam que arminianismo é uma tremenda ignorância teologica.
E por aí vai.
Haveria muito mais
a dizer e a comparar, muito mais setores, divisões e facções dentro da Igreja Evangélica.
Mas creio que você já conseguiu captar o espírito da coisa, não preciso ficar
listando tudo aqui. A verdade é que a Igreja Evangélica tem demonstrado uma
gigantesca intolerância em suas ramificações, pois “não pode suportar as
crenças e as opiniões alheias, se divergem das suas”.
A grande questão
E direito de cada
um crer no que quiser. Algumas das teologias que mencionei acima eu considero
heresias, outras considero posturas equivocadas. Mas a grande questão é: como
lido com isso? Como trato os irmãos que discordam de mim? (E repare que os
chamei de irmãos, apesar das divergências). O cerne do problema está no trecho
da definição do dicionário de intolerante que se refere a “não poder suportar”.
Pois “não poder suportar” se traduz na prática como sendo algo com que é
impossível de se lidar. E, por isso, já que é impossível lidar de modo
racional, faz-se da forma mais primitiva, instintiva e animalesca que é
possível a um ser humano: com ofensas, agressões, destratos, acusações, ad
hominem, piadinhas de mau gosto, demerecimento do que é importante para o outro
e por aí vai. E tudo isso, meu irmão, minha irmã… é um comportamento mundano.
E, logo, é pecado.
Sim, é pecado, pois
as Sagradas Escrituras deixam claro:
“Amarás ao Senhor
teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas
forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo” (Lucas
10.27).
“E se há algum
outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti
mesmo.” (Romanos 13.9b).
“Porque toda a lei
se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”
(Gálatas 5.14).
Sim: a intolerância
exclui o amor.
Ou seja: na maioria
dos casos a nossa discordância se torna intolerância e a intolerância se torna
o pecado da falta de amor ao próximo. E como um abismo chama outro abismo, o
passo seguinte à falta de amor ao próximo é outro grande pecado que tem
assolado a Igreja Evangélica brasileira: desunião. Mas sobre isso falarei em
outro artigo.
Sim, eu e você
somos intolerantes. E, consequentemente, arrogantes. E, consequentemente,
pecadores. Está mais do que na hora de deixarmos essa intolerância, essa
arrogância e esse pecado de lado. E a única forma para alcançarmos esse
objetivo é passarmos a ser aqueles que podem SIM suportar as crenças e as
opiniões alheias, mesmo se divergem das nossas. E isso só será possível se nos
concentrarmos no que é comum a todos os membros do Corpo de Cristo, seja a mão,
o pé, o olho, o duodeno ou o pâncreas: o DNA que todos esses membros carregam
em si: Cristo. Seus ensinamentos e mandamentos. Dar a outra face. Andar a
segunda milha. Ajudar o inimigo ferido. Tomar a própria cruz e segui-lo. Viver
a espiritualidade plena que o Evangelho propõe. Chega de intolerância. Chega de
perder tempo discutindo bobagens. Chega de defender com orgulho besta o seu
ponto de vista. Ouça mais. Fale menos. Pare de ser o dono da verdade e esteja
aberto a outras possibilidades. Se te acusarem, responda com gentilezas. Ame
quem discorda de você. No mínimo, trate-o com amor e respeito. Discuta ideias,
não ofenda pessoas.
Últimas palavras
Oremos todos por
isso. Ajamos nesse sentido. Para que abandonemos imbecilidades como chamar
aqueles que são diferentes de nós de “sorveterianos”. Pois isso não é uma
piadinha sem maldade. É sintoma de uma doença grave, que tem infectado a
Igreja Evangélica: o câncer da intolerância. E que provoca efeitos colaterais
demoníacos, como a falta de amor. É isso é algo muito sério, e que fazemos aos
montes, seja falando mal de um ou outro numa twitcam, num tweet, no facebook,
no youtube, nos corredores da igreja ou na roda dos escarnecedores. Se você age
com essa irreverência, chega. Basta. Promova a unidade que Jesus pediu em
oração ao Pai que tivéssemos. Esse é o meu e o seu papel. Pois só assim seremos
uma Igreja que começa a engatinhar rumo à tolerância que Jesus espera de nós.
Paz a todos vocês
que estão em Cristo.
Autor: Mauricio
Zágari
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