Estou convencido de que, para
esses santos negligenciados, os quais aprenderam a antecipar e a desfrutar de
Deus apesar das dificuldades da vida na terra, o céu parecerá mais com um
retorno para o lar há muito aguardado do que uma visita a um novo lugar. Na vida
deles, as bem-aventuranças tornaram-se reais. Para as pessoas que foram
apanhadas pela dor, em lares desfeitos, no caos econômico, no ódio e no medo,
na violência — para essas, Jesus oferece uma promessa de um tempo, mais longo e
mais substancial do que este tempo na terra, de saúde e de inteireza, de prazer
e de paz. Um tempo de recompensas.
A grande inversão. Com o tempo aprendi a respeitar e até a esperar as
recompensas que Jesus prometeu. Mesmo assim, essas recompensas se encontram em
algum lugar no futuro, e as promessas pendentes não satisfazem as necessidades
imediatas. Ao longo do caminho, cheguei a crer que as bem-aventuranças
referem-se ao presente também, além do futuro. Precisamente contrapõem o
sucesso no reino do céu ao reino deste mundo.
J. B. Phillips traduziu as
bem-aventuranças que se aplicam ao reino deste mundo:
Felizes os “intrometidos”:
pois subirão a postos elevados no mundo.
Felizes os que têm pavio
curto: pois nunca permitirão que a vida os machuque.
Felizes os que se queixam: pois
conseguem fazer o que querem no final.
Felizes os blasés: pois nunca
se preocupam com os seus pecados.
Felizes os escravizadores:
pois obterão resultados.
Felizes os homens notáveis
deste mundo: pois se aproveitam das circunstâncias.
Felizes os perturbadores: pois
são notados pelos outros.1
A sociedade moderna vive por
regras de sobrevivência dos mais capacitados. “Aquele que morre com mais
brinquedos é o vencedor”, diz a frase de um pára-choque. Da mesma forma a nação
com as melhores armas e com o maior PIB. O proprietário dos Chicago Bulls
apresentou um resumo compacto das regras que governam o mundo visível na
ocasião da aposentadoria (temporária) de Michael Jordan. “Ele está vivendo o
sonho americano”, disse Jerry Reinsdorf. “O sonho americano é atingir um
momento na vida em que não é preciso fazer nada que você não queira e em que
pode fazer tudo o que quer.”
Esse pode ser o sonho
americano, mas sem dúvida não é o sonho de Jesus conforme revelado nas
bem-aventuranças. As bem-aventuranças expressam com bastante clareza que Deus
avalia este mundo por um conjunto de lentes. Deus parece preferir os pobres e
os que choram, à Loteria Federal e aos supermodelos que se divertem na praia. É
estranho, Deus pode preferir a América Latina do Centro e do Sul à praia de
Malibu, e Ruanda a Monte Carlo. Na verdade, poder-se-ia colocar um subtítulo no
sermão do monte, não a “sobrevivência dos mais aptos”, mas o “triunfo das
vítimas”.
Diversas cenas nos evangelhos
apresentam um bom quadro do tipo de pessoas que impressionou Jesus. Uma viúva
que colocou seus últimos dois centavos como oferta. Um desonesto cobrador de
impostos tão arrasado pela ansiedade que subiu em uma árvore para ter uma visão
melhor de Jesus. Uma criança sem nome, sem descrição. Uma mulher com uma fileira
de casamentos infelizes. Um mendigo cego. Uma adúltera. Um homem com lepra. A
força, a boa aparência, as boas relações e um instinto competitivo podem trazer
o sucesso para uma pessoa em uma sociedade como a nossa, mas são exatamente
aquelas qualidades que bloqueiam a entrada no reino do céu. A dependência, a
tristeza, o arrependimento, um anseio de mudar — esses são os portões para o
reino de Deus.
“Bem-aventurados os pobres de
espírito”, disse Jesus. Um comentário traduz para “Bem-aventurados os desesperados”.
Não tendo a quem buscar, os desesperados se voltam para Jesus, o único que pode
oferecer a libertação por que anseiam. Jesus realmente cria que uma pessoa
pobre de espírito, ou chorosa, ou perseguida, ou faminta e sedenta da justiça
tem uma “vantagem” especial sobre o restante de nós. Talvez, apenas talvez, a
pessoa desesperada clame a Deus pedindo ajuda. Nesse caso, essa pessoa é
verdadeiramente bem-aventurada.
Os estudiosos católicos
cunharam a expressão “a opção de Deus pelos pobres”, em referência a um
fenômeno que encontraram no Antigo e no Novo Testamento: a parcialidade de Deus
para com os pobres e os prejudicados. Por que Deus destacaria os pobres para
atenção especial em detrimento de qualquer outro grupo?, eu ficava
imaginando. O que “faz os pobres merecerem a preocupação de Deus? Recebi ajuda
nessa pergunta de uma escritora chamada Monika Hellwig, que faz uma lista das
seguintes “vantagens” de ser pobre:
1.
Os pobres sabem
que têm premente necessidade de redenção.
2.
Os pobres
reconhecem não apenas sua dependência de Deus e de gente poderosa como também
sua interdependência uns dos outros.
3.
Os pobres
depositam a segurança não nas coisas, mas nas pessoas.
4.
Os pobres não têm
um senso exagerado de sua própria importância e nenhuma necessidade exagerada
de privacidade.
5.
Os pobres esperam
pouco da competição e muito da cooperação.
6.
Os pobres
conseguem distinguir entre necessidade e luxo.
7.
Os pobres podem
esperar, porque adquiriram uma espécie de paciência obstinada nascida de uma
dependência reconhecida.
8.
Os temores dos
pobres são mais realistas e menos exagerados, porque já sabem que a pessoa
pode sobreviver a grandes sofrimentos e necessidades.
9.
Quando os pobres
ouvem a pregação do evangelho, ele soa como boas novas e não como uma ameaça ou
repreensão.
10. Os pobres podem reagir ao apelo do evangelho com certo
abandono e com uma inteireza descomplicada porque têm tão pouco a perder e
estão prontos para tudo.
Em suma, não por escolha
própria — podem intensamente desejar o contrário —, as pessoas pobres encontram-se
em uma postura que se encaixa na graça de Deus. Em sua condição de necessidade,
de dependência e de insatisfação com a vida, podem dar boas vindas ao livre dom
do amor de Deus.
Como exercício voltei à lista
de Monika Hellwig, substituindo a palavra “pobres” pela palavra “ricos”, e
alterando cada frase para o seu inverso. “Os ricos não sabem que precisam
prementemente de redenção... Os ricos não depositam a confiança nas pessoas,
mas nas coisas...” (Jesus fez uma coisa parecida na versão de Lucas das
bem-aventuranças, mas essa parte recebe muito menos atenção: “Mas ai de vós, os
ricos! Pois já tendes a vossa consolação...”.)
A seguir, tentei uma coisa
ainda mais ameaçadora: substituí “ricos” pela palavra “eu”. Revendo cada uma
das dez declarações, perguntei-me se minhas próprias atitudes se pareciam mais
com as dos pobres ou com as dos ricos. Reconheço facilmente minhas
necessidades? Rapidamente dependo de Deus e das outras pessoas? Onde fica a
minha segurança? Estou mais pronto a competir ou a cooperar? Posso distinguir
entre necessidades e luxos? Sou paciente?
As bem-aventuranças me
parecem boas novas ou uma espécie de repreensão?
Quando fiz esse exercício
comecei a perceber por que tantos santos voluntariamente se submetem à
disciplina da pobreza. A dependência, a humildade, a simplicidade, a cooperação
e um senso de abandono são qualidades grandemente prezadas na vida espiritual,
mas extremamente fugidias para as pessoas que vivem no conforto. Podem existir
outros caminhos para Deus mas — ah! — são difíceis, tão difíceis como um camelo
se espremendo pelo buraco de uma agulha. Na grande inversão do reino de Deus,
os santos prósperos são muito raros.
Não creio que os pobres sejam
mais virtuosos do que qualquer outra pessoa (embora tenha descoberto que são
mais compassivos e com freqüência mais generosos), mas são menos inclinados a fingir
que são virtuosos. Não têm a arrogância da classe média, que pode
habilmente disfarçar seus problemas sob uma fachada de justiça própria. São
mutuamente mais dependentes, porque não têm escolha; precisam depender dos
outros simplesmente para sobreviver.
Agora vejo as
bem-aventuranças não como divisa protetora, mas como profundas perspectivas
dentro do mistério da existência humana. O reino de Deus vira a mesa. Os pobres,
os famintos, os que choram e os oprimidos de fato serão bem-aventurados. Não,
naturalmente, por causa de seu estado de infortúnio — Jesus passou grande parte
da vida tentando remediar esses infortúnios. Antes, são bem-aventurados por
causa de uma vantagem inata que têm sobre os mais privilegiados e
auto-suficientes. As pessoas ricas, com sucesso e belas podem muito bem passar
pela vida descansando em seus dotes naturais. As pessoas que têm falta de tais
privilégios naturais, uma vez desqualificadas para o sucesso no reino deste
mundo, têm simplesmente de se voltar para Deus no momento da necessidade.
Os seres humanos não admitem
prontamente o desespero. Quando o fazem, o reino do céu se aproxima.
A realidade psicológica. Mais recentemente, passei a ver um terceiro nível nas
bem-aventuranças. Além de Jesus oferecer um ideal para lutarmos por alcançar,
com recompensas cabíveis em mira, além de virar a mesa de nossa sociedade
viciada em sucesso, também estabeleceu uma fórmula simples de verdade
psicológica, o nível mais profundo da verdade que conhecemos na terra.
As bem-aventuranças revelam
que aquilo que sucede no reino do céu também nos beneficia mais nesta vida aqui
e agora. Levei muitos anos para reconhecer esse fato, e apenas agora estou
começando a entender as bem-aventuranças. Elas ainda me fazem tremer toda vez
que as leio, mas assustam porque reconheço nelas uma riqueza que desmascara
minha própria pobreza.
Bem-aventurados os pobres
de espírito [...] Bem-aventurados os mansos. Um livro como Intellectuals (Os intelectuais), de Paul Johnson,
apresenta com minúcias convincentes tudo aquilo que sabemos ser verdadeiro: as
pessoas que elogiamos, aquelas com as quais tentamos competir e as que
apresentamos na capa das revistas populares não são as satisfeitas, as felizes,
as equilibradas que possamos imaginar. Embora as personagens de Johnson (Ernest
Hemingway, Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, Edmund Wilson, Bertoldt Brecht
etc.) sejam consideradas vencedoras por qualquer padrão moderno, seria difícil
reunir um grupo mais infeliz, mais egomaníaco e mais corrompido.
Minha carreira de jornalista
me tem proporcionado oportunidades de entrevistar “astros”, mesmo dos grandes
times de futebol da Liga Americana de Futebol, atores do cinema, músicos,
autores de best-sellers, políticos e personalidades da TV. Essas são as pessoas
que dominam a mídia. Nós as bajulamos, vasculhando-lhes minuciosamente a vida:
as roupas que usam, a comida que comem, as trilhas de corrida que seguem, as
pessoas que amam, o dentifrício que usam. Mas posso dizer que, em minha
limitada experiência, descobri que o princípio de Paul Johnson continua
verdadeiro: nossos “ídolos” são o grupo de pessoas mais infelizes que já
conheci. Muitos têm casamentos problemáticos ou desfeitos. Quase todos são
incuravelmente dependentes da psicoterapia. Numa grande ironia, esses heróis
maiores que a própria vida parecem atormentados pela dúvida acerca de si
mesmos.
Também passei tempo com
pessoas a que chamo “servos”. Médicos e enfermeiras que trabalham entre os
últimos párias, pacientes com lepra na Índia rural. Um graduado de Princeton
que dirige um abrigo para os sem-teto de Chicago. Trabalhadores da área médica
que abandonaram empregos altamente remunerados para atuar em alguma cidadezinha
do Mississippi. Assistentes sociais na Somália, no Sudão, na Etiópia, em
Bangladesh e em outros depósitos do sofrimento humano. Os PhDs que conheci no
Arizona, agora espalhados pelas selvas da América do Sul traduzindo a Bíblia
para línguas obscuras.
Eu estava preparado para
honrar e admirar esses servos, para considerá-los exemplos inspiradores. Não
estava preparado para invejá-los. Mas agora, quando reflito sobre os dois
grupos lado a lado, astros e servos, os servos claramente sobressaem como
favorecidos e agraciados. Sem dúvida, preferiria gastar tempo entre os servos a
gastá-lo entre os astros: possuem qualidades de profundidade e de riqueza e até
mesmo alegria que não encontrei em nenhum outro lugar. Os servos trabalham por
pouco pagamento, longas horas e sem aplausos, “desperdiçando” seus talentos e
habilidades entre os pobres e iletrados. De alguma forma, entretanto, no
processo de perder a vida, a encontram.
Os pobres de espírito e os
mansos são realmente abençoados, creio agora. Deles é o reino dos céus, e são
eles que herdarão a terra.
Bem-aventurados os puros
de coração. Durante um período de
minha vida em que lutava contra a tentação sexual, encontrei um artigo que me
levou a um livrinho, What I believe [Em que creio], de um escritor
católico francês, François Mauriac. Surpreendeu-me que Mauriac, homem idoso,
dedicasse considerável espaço para discutir sua própria concupiscência. Ele
explicava: “A idade avançada arrisca-se a ser um período de redobrada tentação,
porque a imaginação de um homem velho substitui de maneira horrível o que a
natureza lhe recusa”.
Eu sabia que Mauriac entendia
de concupiscência. Viper’s tangle [A teia da víbora] e A kiss for the
leper [Um beijo no leproso], romances que o ajudaram a ganhar o prêmio
Nobel de literatura, descrevem a concupiscência, a repressão e a angústia
sexual tão bem como nada mais que tenha lido. Para Mauriac, a tentação sexual
era um campo de batalha conhecido.
Mauriac descartou a maior
parte dos argumentos a favor da pureza sexual que aprendeu em sua educação católica.
“O casamento vai curar a concupiscência”: não no caso de Mauriac, como para
muitos outros, porque a concupiscência implica a atração de criaturas
desconhecidas e o gosto da aventura e dos encontros fortuitos. “Com a
autodisciplina, consegue-se dominar a concupiscência”: Mauriac descobriu que o
desejo sexual é como uma maré enchente bastante poderosa para acabar com todas
as melhores intenções. “A verdadeira satisfação só pode ser encontrada na
monogamia”: isso pode ser verdade, mas certamente não parece verdade
para alguém que não encontra alívio da absoluta necessidade sexual mesmo na
monogamia. Assim, ele avaliou os argumentos tradicionais a favor da pureza e
descobriu que são incompletos.
Mauriac concluiu que a
autodisciplina, a repressão e os argumentos racionais são armas inadequadas
para lutar contra o impulso da impureza. No fim, ele encontraria apenas um
motivo para ser puro, e é o que Jesus apresentou nas bem-aventuranças: “Bem-aventurados
os puros de coração, pois eles verão a Deus”. Nas palavras de Mauriac: “A
impureza nos separa de Deus. A vida espiritual obedece a leis tão verificáveis
quanto as do mundo físico [...] A pureza é a condição para um amor mais elevado
— para a posse acima de todas as outras posses: a de Deus. Sim, isso é o que está
em jogo, e nada menos”.
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